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Archive for julho \31\America/Sao_Paulo 2012

Como todos sabemos, a história, sobretudo a História com letra maiúscula, é cheia de mistificações. Enaltecemos nossos heróis e desmerecemos nossos inimigos. Após a guerra, os vencedores são glorificados, mesmo em seus defeitos, enquanto os derrotados são desprezados até em suas virtudes. Winston Churchill sabia disso, quando, em meio a guerra, ao ser questionado sobre o que a História diria dele, previu com deliciosa ironia: “a História será bondosa comigo, pois eu tenho a intenção de escrevê-la[1]”.

José Saramago, no seu maravilhoso livro História do Cerco de Lisboa, conclui, por intermédio de um de seus melhores personagens, o revisor Raimundo Benvindo Silva, que, à exceção dos fatos reais, não existe história, mas apenas literatura. Ao início do romance, ao ouvir do autor de um livro sobre o cerco à cidade de Lisboa a advertência de que o seu livro era de História, o revisor Raimundo Silva, do alto de sua experiência, tendo sido encarregado de revisar inúmeros livros sobre História, irá contestá-lo com a seguinte distinção entre os fatos históricos e a História escrita: “senhor doutor, tudo quanto não for vida, é literatura. A História também, a História sobretudo, sem querer ofender”[2].

Muito bem. Entre as vítimas das fraudes e mistificações históricas, poucos sofreram tanta injustiça como, por décadas, vem suportando o nome de Hans Kelsen. Todo aquele que conhece o mínimo sobre a vida e a obra do pai da Teoria Pura do Direito confronta-se diariamente com falsidades e difamações perpetradas tanto contra a sua história pessoal quanto contra suas formulações teóricas. No Brasil, a falta de leitura e de conhecimento sobre a obra do grande jurista apenas incrementam a extensão e a profundidade das mentiras históricas contra ele assacadas. De fato, não é incomum encontrarmos alunos, profissionais e até mesmo professores de Direito que atribuem à sua teoria, por exemplo, ter conferido legitimidade à ordem jurídica nazista, isso quando não fazem pior, ao atribuir ao próprio Kelsen inclinações nazifacistas.

A ofensa já seria de todo extraordinária, não fosse o fato ainda mais surpreendente de Hans Kelsen, por sua origem judaica, ter sido um dos intelectuais mais perseguidos pelo Nacional-Socialismo de Hitler.

São muitos os atos de perseguição contra ele desferidos pelo Partido Nacional-Socialista (nazista). Com base na Lei de Restauração do Funcionalismo, foi demitido, com efeito imediato, do seu cargo de professor em 1933. Em 1934, mais uma vez por causa de sua origem judaica, é forçado a deixar a editoria da Revista para o Direito Público (Zeitschrift für Öffentliches Recht), que ele próprio fundara. Em fevereiro de 1936, perde a cidadania austríaca e alemã e passa a ser perseguido em toda a Europa, isto é, em todos os países em que o regime nazista tivesse influência.

Já reconhecido em todo o mundo (em 1936, já fora agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Harvard e por outras universidades), Kelsen viu-se obrigado a deixar a Áustria e a Alemanha, tendo encontrado emprego na Universidade de Praga, graças ao apoio de Frans Weiss, professor de origem judaica como ele. Ao chegar em Praga, é do próprio Kelsen um dos relatos mais impressionantes da perseguição que o Nazismo implacavelmente lhe impunha, mesmo longe de Viena e de Berlim[3]:

“No dia de minha aula inaugural, o prédio da universidade estava ocupado por estudantes nacionalistas e por membros de organizações não estudantis de nacionalidade alemã. Precisei cruzar por uma brecha estreita essa multidão insuflada pela imprensa nacionalista alemã contra minha contratação para chegar ao auditório colocado à minha disposição pelo decano para minha aula inaugural. Como se constatou em seguida, esse auditório também estava ocupado pelas organizações nacionalistas. Os estudantes que haviam se inscrito na minha aula foram impedidos com violência de entrar no auditório. (…) Quando entrei no auditório, ninguém se levantou das cadeiras — era uma afronta direta, já que, segundo a tradição acadêmica, os estudantes tinham de se levantar à chegada do professor. Logo depois das minhas primeiras palavras, ressoou o grito: “Abaixo os judeus, todos os não judeus têm que deixar a sala”, com o que todos os presentes deixaram o auditório, onde fiquei sozinho. Tive de atravessar a mesma brecha entre os fanáticos que me encaravam com olhares cheios de ódio para voltar ao decanato. Ao fazê-lo, observei que muitos estudantes eram espancados e jogados escada abaixo. Eram muitos estudantes inscritos na minha aula, que haviam sido encarcerados em um auditório e agora eram jogados fora do prédio com violência.”

Kelsen só encontraria paz depois de emigrar para os Estados Unidos, tornando-se professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde viveu até a sua morte e que se tornaria, no dizer do próprio Kelsen, o último refúgio de um viajante cansado.

Contudo, pode-se dizer que a perseguição a Hans Kelsen não terminaria com a sua morte. Kelsen é perseguido até hoje pelas posições teóricas que defendeu. Na maior parte das vezes, por pura desinformação; em outros casos, indisfarçada má fé.

Não sou exatamente um kelseniano. Tenho algumas diferenças e dificuldades com algumas conclusões do grande pensador. Provavelmente, em tais diferenças, eu esteja errado. Mas são pontos importantes que não me permitem inscrever-me como um adepto da teoria pura. Entretanto, Norberto Bobbio, ele mesmo um neokelseniano, concluirá que em algum nível muito sutil de sua teoria pura, mais especificamente, no âmbito de sua metalinguagem, até o próprio Kelsen falharia em ser kelseniano, pois, tão cioso da pureza do método (Reinheit der Methode) quando afirma que toda ciência deve se limitar a dizer o que seu objeto é, e não o que ele deve ser, Kelsen acaba por pregar, contradizendo-se, no nível de sua metateoria do Direito, o que a teoria do Direito deve ser e não o que ela de fato é.

Em Kelsen, a ciência e o conhecimento devem ser sempre descritivos, nunca prescritivos. Em termos mais analíticos: Kelsen, como explica Bobbio, trabalha com três níveis de linguagem: a linguagem do Direito (que é prescritiva e pertence à autoridade do Estado que decide), a linguagem do cientista do Direito (que, segundo Kelsen, deve ser descritiva e pertence ao cientista do direito) e a linguagem da teoria da ciência do Direito (que, sendo conhecimento, deve ser também descritiva/explicativa e pertence ao teórico que tem por objeto a própria ciência do Direito). Contudo, como demonstra Bobbio, quando Kelsen, a partir da teoria da ciência do Direito, prescreve ao cientista do Direito o que ele deve fazer (limitar-se a dizer o que o Direito é) e não apenas o que o cientista realmente faz, Kelsen, por sua vez, como vemos, na condição de teórico da ciência, não está descrevendo o que o seu objeto de estudo (a ciência do direito) é, mas sim, prescrevendo o que ele deve ser. Nisso, segundo Bobbio, a contradição kelseniana. Como se vê, a pureza metódica acaba sendo abandonada pelo menos no nível da metateoria kelseniana.

Mas, sutileza teórica e ironia à parte, todos aqueles que têm o conhecimento básico da obra do grande jurista certamente já testemunhou centenas de inverdades, confusões e desvios que são, cotidianamente, praticados em nome de suas posições teóricas. É tão grande a montanha de anomalias praticadas contra a teoria pura, que a primeira tarefa de quem almeja defender as suas posições é a de separar o que de fato foi dito do que ele jamais defendeu.

Uma das mais impressionantes inverdades atribuídas a Kelsen, essa inclusive compartilhada no Brasil por alguns que se dizem kelsenianos, é a de que, em sua teoria pura, Kelsen teria afirmado que o Direito ofereceria sempre uma única resposta correta aos casos jurídicos controvertidos. Nada mais falacioso. Hans Kelsen, em verdade, tem um capítulo na segunda versão da seu Teoria Pura dedicado, precisamente, a dizer o contrário, isto é, dizer que, no máximo, o Direito oferece à autoridade encarregada da decisão para o caso concreto uma moldura onde ele pode subtrair, mediante um ato de vontade, uma de várias possibilidades: “Se por ‘interpretação’ se entende a fixação por via cognoscitiva do ato de interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o direito a interpretar e,consequentemente, o conhecimento das vária possibilidades que dentro dessa moldura exista[4].

Outra controvertida tese de Kelsen, origem de muitas críticas, é a sua defesa intransigente, aliás, de origem Kantiana, da diferença entre moral e direito. Vem daí uma das maiores inverdades contra Kelsen: a de que sua teoria teria dado sustentação e legitimidade ao Nazismo. Muito pelo contrário. A maior parte dos juristas nazistas aceitava de bom grado a submissão do Direito alemão a uma autoidentificada moral do povo alemão como a fé e moral do partido nacional-socialista. A fusão e a submissão do Direito à moral, portanto, além de uma enorme confusão teórica que persiste até hoje, só por si, não lhe acresce muito em legitimidade e justiça. De fato, aceita a submissão do Direito à moral, ter-se-ia depois que se questionar sobre qual moral estamos a falar, numa regressão ao infinito. Aqui como diz o próprio Kelsen, em outro maravilhoso livro (Was ist Gerechtigkeit?), muitas lágrimas e muito sangue já foram derramados em torno dessa questão: “o que é a justiça?” e, no máximo, podemos nos esforçar para ter melhores perguntas, jamais uma resposta definitiva[5].

Por outro lado, com o dizer que o estudo do Direito tem que observar o Direito como de fato ele é, e não como ele deveria ser, Kelsen jamais negou que o Direito sofresse injunções tanto da moral como da política (aliás, provocado pela incompreensão dos críticos, afirma-o expressamente), mas pregava apenas que o estudo de um objeto (o Direito) por uma ciência (a ciência do Direito) deveria concentrar-se no que ele de fato é, e não do que ele (o Direito) deveria ser idealmente.

Além das múltiplas explicações dadas pelo próprio Kelsen na sua Reine Rechtslehre sobre a importância da pureza do método, é interessante ouvir do próprio Kelsen o que lhe movia quando se viu obrigado a escrever a Teoria Pura, pois muitos dos seus problemas estão sendo cotidianamente ressuscitados: “O que chamou a minha atenção na exposição tradicional desses problemas foi a total falta de exatidão e fundamentação sistemática e, sobretudo, uma tremenda confusão dos questionamentos, a confusão permanente entre o que é o Direito positivo e o que o Direito deveria ser — seja qual for o ponto de vista valorativo — e a diluição da fronteira entre a questão de como os sujeitos deveriam se comportar segundo o Direito positivo e a questão de como eles efetivamente se comportam. A separação nítida entre uma teoria do Direito positivo e a ética, de um lado, e a sociologia, do outro, me parecia urgentemente necessária. Mas tarde (…) ficou claro para mim que a pureza do método era o objetivo ao qual eu tendia[6]”.

Não obstante a crítica dirigida a Kelsen, o fato é que a questão da separação entre Direito e moral está mais viva do que nunca. Para não ir muito longe em exemplos a favor de Kelsen, além do outro grande jurista do século passado, Herbert Hart, vemos hoje o mais respeitado dos filósofos, insuspeito em sua teoria sobre a moral, antes de tudo um defensor da democracia e do diálogo, ninguém menos do que Jürgen Habermas, que, desde o seu já clássico Faktizität und Geltung (vertido para o português como “Direito e Democracia”), vem repudiando o que, a seu juízo, representa graves conseqüências de uma indevida confusão entre normas jurídicas e normas morais[7].

Mas perguntarão: E se o direito for injusto? Kelsen ofereceu, com o exemplo de sua vida, resposta a esse problema com a qual, certamente, Habermas concordaria: numa ordem democrática, mude-se, ou anule, a norma considerada injusta, ou indevida, pelo parlamento, ou através do controle de constitucionalidade pela justiça constitucional, da qual Kelsen, não esqueçamos, pelos menos no modelo concentrado, foi um dos idealizadores à época da promulgação da Constituição austríaca de 1920.

Muito bem, mas, insistirão: E, na extraordinária situação, de a própria ordem jurídica como um todo ser injusta e sem possibilidade de modificação? Aí, a única solução é, provavelmente, fazer como Kelsen e, não podendo suportar nem mudar uma ordem jurídica que se apresenta desumanamente opressiva e injusta em seu todo, emigrar para um outro país.

[1] (No original: History will be kind to me for I intend to write it).

[2]J. Saramago. História do Cerco de Lisboa. SP: Companhia das Letras, 2000, p. 15.

[3] Autobiografia de Hans Kelsen. Tradução de Gabriel Nogueira dias e José Ignàcio Coelho Mendes Neto Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2ª Ed, 2011, p. 102.

[4] H. Kelsen. Teoria Pura do Direito. SP: Martins Fontes, 2006, p.390

[5] Citação no original: “Was ist Gerechtigkeit? Keine andere Frage ist so leidenschaftlich erörtert, für keine andere Frage so viel kostbares Blut, so viel bittere Tränen vergossen worden, über keine andere Frage haben die erlauchtesten Geister – von Platon bis Kant – so tief gegrübelt. Und doch ist diese Frage heute so unbeantwortet wie je. Vielleicht, weil es eine jener Fragen ist, für die die resignierte Weisheit gilt, daß der Mensch nie eine endgültige Antwort findet, sondern nur suchen kann, besser zu fragen.”, in H. Kelsen. Was ist Gerechtigkeit?, Stuttgart: Reclam, 2000, p. 9.

[6] Autobiografia de Hans Kelsen. Op. cit., 2011, p. 42.

[7] J. Habermas. Faktizität und Geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998, 704 p.

Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2012

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A relação de concubinato pode ser equiparada ao casamento e garantir a partilha dos bens constituídos durante o relacionamento, de acordo com entendimento da 1ª Vara de Família de Cuiabá. Com a decisão da juíza Amini Haddad Campos, um homem casado que manteve relacionamento extraconjugal por quase duas décadas terá de dividir o patrimônio construído nesse período com a sua companheira, da mesma forma como acontece quando os casamentos acabam.

Na sentença, Amini amplia o conceito de família e diz que, independentemente do incentivo da Constituição Federal à formação da família tradicional, existem diversas realidades humanas que também precisam ser atendidas. Como exemplo, cita a decisão em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, apesar de não existir lei que trate especificamente sobre esses relacionamentos.

A juíza explica que a legislação brasileira reconhece o concubinato, mas não garante direitos às famílias constituídas dessa forma. Lacuna esta, segundo a decisão, que precisa ser sanada, sob o risco de gerar injustiças. “Essas famílias fazem parte da sociedade e não podem ser excluída da percepção de justiça a que fazem jus”, escreveu.

A autora do processo pediu o reconhecimento da união estável e a partilha dos bens. Ela viveu durante 17 anos, sob o mesmo teto, com um homem casado e trabalhava e o ajudava na manutenção das fazendas. Segundo ela, a relação era pública, o que provou anexando aos autos fotos do dia-a-dia do casal e recortes de jornal em que apareceram juntos. A relação terminou em 2006, quando ele decidiu se mudar para outro estado e os filhos assumiram os negócios do pai.

Ele não negou na Justiça a existência do relacionamento, mas argumentou que eles se aproximaram mais por volta de 2000. Ressaltou também tratar-se de relação extraconjugal, já que ele tinha negócios em Mato Grosso e em São Paulo, alternando de tempos em tempos a sua estadia, além do fato de ser casado.

Para a juíza da 1ª Vara de Família de Cuiabá, não se trata simplesmente de uma traição, mas de um núcleo familiar constituído e mantido durante anos, com afeto mútuo, respeito e companheirismo. “Nessa situação, pode-se considerar que o esforço e a dedicação da autora são equiparados à da esposa legítima, tendo em que vista que a primeira também desenvolveu atividade nessa condição, administrando a casa, os pertences do casal, acompanhando/chefiando os empregados da fazenda, e, portanto, direitos devem ser assegurados”, concluiu.

Na sua decisão, de 72 páginas, a juíza explica que, de acordo com o entendimento contemporâneo da Constituição Federal, o principal requisito para o reconhecimento das instituições familiares é a relação afetiva existente entre o casal.

Amini Campos diz ainda que, no caso concreto, é possível perceber semelhanças entre o concubinato e o direito de filhos concebidos dentro ou fora do casamento, que têm os mesmos direitos. “De acordo com esse entendimento não se pode utilizar dois pesos e duas medidas para um mesmo caso. Podemos destacar, pois que família é família. De igual forma, filhos são filhos.”

Para a titular da 1ª Vara de Família de Cuiabá, chegou a hora de se rediscutir certos conceitos jurídicos sob pontos de vista mais técnicos e equânime com o objetivo de se garantir direitos e garantias fundamentais.

Clique aqui para ler a sentença.

Por Lilian Matsuura

Fonte: CONJUR

 

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Amplamente usada no Brasil, sobretudo na compra de veículos e de automóveis, a alienação fiduciária é a discussão principal de diversos processos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça. Uma dos embates acontece quando o bem é transferido a outra pessoa, sem que o credor, aquele a quem o bem está alienado, tenha conhecimento do fato.

A alienação fiduciária é a transferência da posse de um bem móvel ou imóvel do devedor ao credor para garantir o cumprimento de uma obrigação. Ocorre quando um comprador adquire um bem a crédito. O credor toma o próprio bem em garantia, de forma que o comprador, apesar de ficar impedido de negociar o bem com terceiros, pode dele usufruir.

A 4ª Turma, no julgamento de Recurso Especial, apreciou uma questão em que uma pessoa que detinha a posse de um automóvel sem a ciência da financeira, pretendia ver reconhecido o usucapião sobre o bem. O colegiado pacificou o entendimento de que a transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário, é ato de clandestinidade incapaz de motivar a posse, sendo por isso impossível a aquisição do bem por usucapião.

Em caso idêntico, o relator, ministro Luis Felipe Salomão, disse que com o entendimento pacificado pelas duas Turmas de Direito Privado do STJ, o Judiciário fecha as portas para o uso indiscriminado do instituto do usucapião: “A prosperar a pretensão deduzida nos autos – e aqui não se está a cogitar de má-fé no caso concreto –, abrir-se-ia uma porta larga para se engendrar ardis de toda sorte, tudo com o escopo de se furtar o devedor a pagar a dívida antes contraída. Bastaria a utilização de um intermediário para a compra do veículo e a simulação de uma “transferência” a terceiro com paradeiro até então “desconhecido”, para se requerer, escoado o prazo legal, o usucapião do bem”.

Segundo ele, quando o bem, garantia da dívida, é transferido a terceiro pelo devedor fiduciante, sem consentimento do credor fiduciário, deve a apreensão do bem pelo terceiro ser considerada como ato clandestino, por ser praticado às ocultas de quem se interessaria pela recuperação do bem”.

Os casos em que o adquirente do bem se arrepende e quer cancelar o financiamento também podem parar no Judiciário. A 3ª Turma entendeu ser possível o consumidor exercer o direito de arrependimento nas compras que faz, após a assinatura de contrato de financiamento com cláusula de alienação fiduciária. Na decisão, o colegiado aplicou as normas do consumidor à relação jurídica estabelecida entre um banco e um consumidor de São Paulo.

O banco ingressou com pedido de busca e apreensão de um veículo pelo inadimplemento do contrato de financiamento firmado com o consumidor. Este alegou que exerceu o direito de arrependimento previsto no artigo 49 do Código do Consumidor e que jamais teria se imitido na posse do bem dado em garantia. O Tribunal de Justiça estadual entendeu que a regra era inaplicável no caso, pelo fato de o código não servir às instituições bancárias.

Seguindo voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a Turma reiterou o entendimento quanto à aplicação do CDC às instituições financeiras e considerou legítimo o direito de arrependimento. Segundo ela, o consumidor assinou dois contratos, o de compra e venda com uma concessionária de veículos e o de financiamento com o banco. Após a assinatura do contrato de financiamento, ocorrido fora do estabelecimento bancário, o consumidor se arrependeu e enviou notificação no sexto dia após a celebração do negócio.

“De acordo com o artigo 49, o consumidor tem sete dias a contar da assinatura do contrato para desistir do negócio, quando a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial.”, acrescentou.

No julgamento de outro Recurso Especial, o STJ decidiu que a instituição financeira não é responsável pela qualidade do produto adquirido por livre escolha do consumidor mediante financiamento bancário. Com esse entendimento, a 4ª Turma reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal que condenou um banco em processo envolvendo a compra de um automóvel.

No caso, a consumidora comprou uma Kombi 1999 na empresa Baratão dos Automóveis, instalada no Distrito Federal, com financiamento concedido pelo banco, em 36 parcelas. Como o veículo apresentou uma série de defeitos dentro do prazo de garantia de 90 dias, ela devolveu o veículo e ajuizou ação de rescisão contratual com pedido de indenização por danos morais contra a revendedora e a instituição financeira.

O TJ-DF rescindiu o contrato de compra e venda e o financiamento e os condenou, solidariamente, a restituir as parcelas já pagas ao banco. Também condenou a empresa de veículos ao pagamento de indenização de R$ 10 mil por danos morais. Para o tribunal, o contrato de financiamento é acessório do contrato de compra e venda, portanto devem ser rescindidos conjuntamente.

O banco recorreu ao STJ alegando que o financiamento é distinto do contrato de compra e venda firmado entre a consumidora e a empresa revendedora e que os defeitos alegados são referentes ao veículo, não caracterizando qualquer irregularidade na prestação do serviço de concessão de crédito. Sustentou, ainda, que por não ter relação com a revendedora o contrato deve ser honrado.

O relator, ministro João Otávio de Noronha destacou que não é licito ao devedor rescindir o contrato e reaver as parcelas pagas de financiamento assegurado por alienação fiduciária, alegando defeito no bem adquirido. Para ele, embora o artigo 18 do Código de Defesa do Consumidor admita a rescisão do contrato de compra e venda de veículo usado, o mesmo não ocorre com o contrato de mútuo, já que a instituição financeira não pode ser tida como fornecedora do bem que lhe foi ofertado como garantia de financiamento.

O ministro ressaltou também que as disposições do CDC incidem sobre a instituição financeira apenas na parte relativa à sua atividade bancária, acrescentando que, quanto a isso, nada foi reclamado. Ele entendeu que, no caso em questão, o banco antecipou dinheiro à consumidora, que o utilizou para comprar o automóvel, sendo certo que o defeito do produto não está relacionado às atividades da instituição financeira, pois toca exclusivamente ao revendedor do veículo.

Em outro recurso, a 4ª Turma impediu mais um caso de consumidor que compra um veículo, deixa de pagar as parcelas do financiamento e entra com ação revisional alegando a existência de cláusulas abusivas para impedir que o bem financiado seja apreendido. Por unanimidade, o colegiado reformou decisão do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e concedeu liminar de busca e apreensão em favor de uma financeira.

Segundo o relator, ministro João Otávio de Noronha, não pode prevalecer a tese de que a probabilidade da existência de cláusulas abusivas no contrato bancário com garantia em alienação fiduciária tenha o condão de desqualificar a mora já constituída com a notificação válida, para determinar o sobrestamento do curso da ação de busca e apreensão, esvaziando o instituto legal do Decreto-Lei 911, de 1969.

“No caso, os autos atestam que a mora do devedor foi comprovada mediante notificação. Ainda que assim não fosse, cumpre observar que não há conexão nem prejudicialidade externa entre a ação de busca e apreensão e a revisional, porquanto são ações independentes e autônomas nos termos do artigo 56, parágrafo 8º, do Decreto-Lei 911/69”, ressaltou.

Por fim, o relator destacou que a concessão de medida liminar em ação de busca e apreensão decorrente do inadimplemento de contrato com garantia de alienação fiduciária está condicionada exclusivamente à mora do devedor, que, nos termos do artigo 2º, parágrafo 2º, do Decreto-Lei 911/69, poderá ser comprovada por carta registrada expedida por intermédio de cartório de títulos e documentos ou pelo protesto do título, a critério do credor.

No contrato de empréstimo garantido com alienação fiduciária, a posse do bem fica com o devedor, mas a propriedade é do credor, conforme determina a lei. A conclusão da 4ª Turma, no julgamento de recurso especial, é a de que, se houver inadimplemento, cabe ao credor requerer a busca e apreensão do bem alienado, que será deferida liminarmente. Cinco dias após a execução da liminar, o credor passará a ser o exclusivo possuidor e proprietário do bem.

A discussão começou em uma ação de busca e apreensão ajuizada pelo banco contra devedora devido ao descumprimento do contrato de mútuo, garantido com alienação fiduciária de um automóvel. Uma liminar garantiu o mandado de busca e apreensão do veículo, nomeado o banco como depositário do bem. Citada, a devedora apresentou contestação e reconvenção. Além disso, requereu a juntada do comprovante de depósito no valor das parcelas vencidas e, como consequência, pleiteou a restituição do veículo apreendido. A contadoria constatou que não houve o depósito exato do valor vencido, e o juízo de primeiro grau permitiu à instituição financeira alienar o bem apreendido, o que levou a consumidora a recorrer.

O Tribunal de Justiça do Paraná proveu o recurso para declarar que a complementação do depósito deve levar em consideração as parcelas que venceram no curso da lide e determinou o retorno dos autos ao contador para que realizasse o cálculo, levando em consideração os valores depositados. Inconformado, o banco recorreu ao STJ sustentando que, para a purgação da mora, cumpre ao devedor pagar a integralidade da dívida pendente (parcelas vencidas, vincendas, custas e honorários advocatícios) no prazo legal de cinco dias, sendo inviável o pagamento extemporâneo. Além disso, alegou violação do Decreto-Lei 911/69 e dissídio jurisprudencial.

Para o relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, no prazo de cinco dias após a busca e apreensão, para o devedor ter direito à restituição, será necessário o pagamento da integralidade da dívida indicada pelo credor na inicial, hipótese em que o bem será restituído livre de ônus.

“A expressão ‘livre de ônus’ significa que o pagamento deverá corresponder ao débito integral, incluindo as parcelas vincendas e encargos”, acrescentou. O ministro destacou ser essa a interpretação que o STJ vem adotando em relação à alteração decorrente da Lei 10.931/04, que modificou o artigo 3º, parágrafo 2°, do Decreto-Lei 911/69 (“No prazo do parágrafo 1º, o devedor fiduciante poderá pagar a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na inicial, hipótese na qual o bem lhe será restituído livre do ônus.”), devendo o entendimento ser mantido em prol da segurança jurídica.

O relator ressaltou, ainda, a impossibilidade de restituição do bem apenas com o pagamento das parcelas vencidas, para o prosseguimento do contrato em relação às vincendas, e a inexistência de violação do Código de Defesa do Consumidor nessa previsão legal. Destacou também a importância em observar o regramento legal referente ao contrato de alienação fiduciária, que é importante ferramenta de fomento à economia. Com informações da Assessoria de Comunicação do STJ.

Fonte: CONJUR

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As empresas Nestlé Brasil Ltda., Mattel do Brasil Ltda., Alsaraiva Comércio Empreedimentos Imobiliários Ltda. (Habib’s), Dunga Produtos Alimentícios Ltda. (Biscoitos Spuleta) e Roma Jensen Comércio e Indústria Ltda. (Roma Brinquedos) foram multadas pelo Procon em mais de R$ 3 milhões por campanhas abusivas dirigidas ao público infantil. A decisão foi publicada no Diário Oficial do Estado de SP na última semana.

O Habib’s terá que pagar quase R$ 2,5 milhões pela veiculação de publicidade de alimentos acompanhados de brinquedos colecionáveis. A denúncia foi feita pelo Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana.

A multa aplicada à Mattel no valor de R$ 534 mil se deu pela veiculação de filmes publicitários da linhaBarbie, que foram considerados inadequados por projetar uma preocupação excessiva com a aparência, consumo excessivo de produtos e inserção precoce da criança no mundo adulto.

Dados apresentados em estudo divulgado no ano passado pelo Instituto Alana e pelo Observatório de Mídia da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, mostraram que a Mattel possui histórico de práticas com campanhas mercadológicas abusivas e veiculou 8.900 anúncios ao público infantil nas duas semanas que antecederam o Dia das Crianças do ano passado.

A Nestlé foi multada em mais de R$ 400 mil pela veiculação dapromoção “Luzes, Câmera, Ação!”, que distribuiu prêmios de grande interesse do público infantil, como DVDs da Xuxa, e a possibilidade de participação num filme protagonizado pela apresentadora.

Além da punição às três empresas mencionadas, a empresas Dunga, dos Biscoitos Spuleta, foi multada em quase R$ 160 mil por promoveranúncio publicitário que estimulava a interação entre fantasia e realidade a partir do consumo de seus alimentos.

Já a Roma Brinquedos, terá que pagar R$ 34 mil por promover sua linha de carrinhos “1100 – 1110 Vision e 0900 Moto Racing” por meio de filme publicitário enganoso, que faziam crer, por exemplo, na possibilidade dos objetos se movimentarem sem a ajuda mecânica de uma criança que os operasse.

Fonte: Migalhas

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É de conhecimento geral a expressão “presente de grego”, que é aquele que gera prejuízo ou aborrecimento a quem o recebe. Ela ilustra a história do enorme cavalo de madeira que os troianos receberam como presente dos gregos e que estava repleto de soldados prontos para a luta, o que acabou pondo fim à Guerra de Tróia. Passaram milhares de anos, mas na sociedade capitalista os fornecedores continuam dando esse tipo de presente a seus clientes. Ilustro com dois casos recentes. Um que foi apresentado como dádiva (a queda dos juros) e outro que é oferecido como presente mesmo. O primeiro, uma tragédia, o segundo, uma comédia. Veja.

Não muito tempo atrás, uma grande empresa do varejo fazia uma propaganda enganosa nas TVs, que era espetacular (não direi o nome da empresa para não fazer propaganda, mas certamente o leitor se lembrará). O anúncio apresentava-se da seguinte forma: aparecia um número na tela, por exemplo 8%, e em seguida um raio destruía aquele número e aparecia um número menor, 7%. Em off, o locutor dizia: “A C B. baixou novamente os juros e aumentou o prazo. Aproveite!!!“.

Era uma propaganda enganosa, mas imperceptível para o consumidor que não está habituado aos cálculos e sistemas de cobrança de juros. O que fazia a empresa? Ela baixava os juros para 7%, mas aumentava o prazo do financiamento de 12 para 18 meses, ou seja, ela aumentava a cobrança dos juros em função do aumento do prazo. Mas parecia ao consumidor que os juros eram menores.

E não é que essa prática acabou sendo adotada recentemente pelos bancos, inclusive os oficiais, com ampla publicidade e, aliás, também forte divulgação pelos meios de comunicação. Um presentão para o consumidor. Veja-se apenas o exemplo da Caixa Econômica Federal. Ela anunciou aos quatro cantos que os juros para o financiamento de imóveis no Sistema Financeiro de Habitação (SFH) haviam caído de 9% para 8,85% ao ano e, para os imóveis fora do SFH, de 10% para 9,9% ao ano. (Anoto que, não era preciso fazer tanto alarde para uma redução percentual tão pequena). Em contrapartida, o prazo de financiamento cresceu de 30 para 35 anos.

Sem querer entrar por demais nos detalhes, eis que é escancarada a manobra, aponto apenas os cálculos feitos e publicados no jornal “Agora” de 12 de junho p.p. (pág. A11): Para um imóvel no valor de R$ 300.000,00, com entrada de R$ 43.975,59 e financiamento de R$ 256.024,41, o valor das prestações mensais para o prazo de 20 anos é de R$ 2.994,63; para um financiamento de 30 anos, R$ 2.639,12 e para um financiamento de 35 anos, R$ 2.537,55.

A prática comercial é a mesma que já antes apontei aqui, ligada não a benefícios da operação de financiamento, mas ao valor mensal da prestação, que uma vez reduzido, faz o consumidor optar pelo prazo mais longo. Acontece que os valores totais pagos no decorrer dos anos mostram que o prejuízo do mutuário é enorme. No 1º caso (20 anos), o valor total pago é de R$ 550.103,88. No 2º caso (30 anos), o valor total é R$ 691.102,49 e no 3º caso (35 anos), o valor total é de R$ 772.723,53. Ou seja, a diferença paga a mais pelo consumidor que optar pelo financiamento mais longo – ainda que os juros tenham abaixado um pouquinho – em relação ao de menor prazo é de R$ 222.619,65.

A questão que estou abordando não é a de maior ou menor taxa de juros, nem de maior ou menor gasto em longos períodos de tempo, mas sim a de que a maneira como a oferta é apresentada pela publicidade, como se fosse uma grande vantagem, mas não é. Presente de grego, pois.

A outra questão que quero abordar diz respeito a um tipo de marketing que, quando examinamos de perto, parece que já atingiu as raias do absurdo, mais parecendo que o fornecedor está rindo da cara do seu cliente. Vou deixar meu amigo Outrem Ego narrar o que aconteceu com ele no dia do seu aniversário. Leia:

No meu aniversário recebi uma mensagem do meu cartão de fidelidade. Estava escrito: ‘Olá, algumas datas merecem ser celebradas, clique e assista’. Eu cliquei e assisti. Era um vídeo simpático apresentando o museu da companhia aérea que no final trazia uma série de imagens de seus funcionários me desejando feliz aniversário. Até aí tudo bem, achei muito simpático. No entanto, não gostei do presente. Parecia mais uma gozação. No final do vídeo aparecia: ‘No mês de seu aniversário você e seu acompanhante têm direito a 50% de desconto nos ingressos’. Tratava-se dos ingressos para poder entrar no citado museu da companhia aérea. Havia alguns problemas adicionais; por exemplo, eu moro em São Paulo e o museu fica no interior do Estado, distante 250 km. Aí eu fui averiguar o valor do presente (50% de desconto). E você sabe quanto custa o ingresso para entrar no museu? R$ 25,00. Eu estava ganhando um presente de R$ 12,50 que, para usufruir, me obrigava a me locomover 250 quilômetros da minha cidade até lá. Será que eles não podiam me dar pelo menos o valor do ingresso inteiro? Sabe, se eu aceitasse o verdadeiro presente de grego, eu ainda teria que pagar R$ 12,50 mais despesas com gasolina, pedágio, etc. Eu achei que fosse trote ou vírus que havia entrado em meu e-mail, mas não! Era mesmo pra valer: Eles estavam tirando sarro da minha cara mesmo“.


Bem, por hoje é isso. Parece mesmo que os marqueteiros de plantão estão completamente descontrolados, de um lado, podendo falar e endossar qualquer tipo de informação (enganosa ou não) e, de outro, nem mais se preocupando com aquilo que os consumidores possam vir a pensar ou sentir em relação às suas mensagens. Já passou da hora de se respeitar os consumidores, não só porque assim o exige a lei, mas também pelas boas regras de educação. E chega de presente de grego.

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* Rizzatto Nunes Desembargador do TJ/SP, escritor e professor de Direito do Consumidor.

Fonte: MIGALHAS

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A previsão em contrato bancário de taxa de juros anual superior a 12 vezes (duodécuplo) a taxa mensal é suficiente para permitir a cobrança da taxa de juros efetiva contratada. Esse é o entendimento firmado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos.

A decisão ocorreu no julgamento de recurso especial sob o rito dos repetitivos, estabelecido no artigo 543-C do Código de Processo Civil. Não são admitidos recursos contra decisões de segunda instância que adotem a tese definida nesses julgamentos.

No caso, foram firmadas duas teses. A primeira estabelece que “é permitida a capitalização de juros com periodicidade inferior a um ano em contratos celebrados após 31 de março de 2000, data da publicação da Medida Provisória 1.963-17/2000, em vigor como Medida Provisória 2.170-36/01, desde que expressamente pactuada”. Nesse ponto, a decisão da Seção foi unânime.

Também é consenso que a capitalização mensal de juros deve estar expressa no contrato de forma clara. Após intenso debate, a maioria dos ministros decidiu que “a previsão no contrato bancário de taxa de juros anual superior ao duodécuplo da mensal é suficiente para permitir a cobrança da taxa efetiva anual contratada”.

Na prática, isso significa que bancos não precisam incluir nos contratos cláusula com redação que expresse o termo “capitalização de juros” para cobrar a taxa efetiva contratada, bastando explicitar com clareza as taxas que estão sendo cobradas. A cláusula com o termo “capitalização de juros” será necessária apenas para que, após vencida a prestação, sem o devido pagamento, o valor dos juros não pagos seja incorporado ao capital para o efeito de incidência de novos juros.

Ficaram vencidos os ministros Luis Felipe Salomão, relator, Nancy Andrighi e Paulo de Tarso Sanseverino. Para eles, a menção numérica das taxas não basta para caracterizar a pactuação expressa de juros capitalizados, a qual deve estar expressa no contrato.

Voto vencedor

No ponto controvertido, prevaleceu o entendimento apresentado em voto-vista pela ministra Isabel Gallotti. Ela concorda que a pactuação de capitalização de juros deve ser expressa, com taxas claramente definidas no contrato, bem como a periodicidade da capitalização. Tudo para que não haja qualquer dúvida quanto ao valor da dívida, aos prazos de pagamento e encargos.

Em extenso voto, com base em doutrina e jurisprudência, a ministra buscou os conceitos jurídico e financeiro para “capitalização de juros”, “juros capitalizados” e “juros compostos”, termos comumente usados como sinônimos. Entendeu que a “capitalização de juros” vedada pelo Decreto 22.626/33 (conhecido como Lei de Usura) em intervalo inferior a um ano e permitida pela Medida Provisória 2.170-36, para as instituições financeiras, desde que expressamente pactuada, está ligada à circunstância de os juros devidos e já vencidos serem, periodicamente, incorporados ao valor principal. Os juros não pagos são incorporados ao capital e sobre eles passam a incidir novos juros.

Por outro lado, há os conceitos abstratos, de matemática financeira, de “taxa de juros simples” e “taxa de juros compostos”, métodos usados na formação da taxa de juros contratada, prévios ao início do cumprimento do contrato. “A mera circunstância de estar pactuada taxa efetiva e taxa nominal de juros não implica, portanto, capitalização de juros, mas apenas processo de formação da taxa de juros pelo método composto”, explicou a ministra.

Taxa abusiva

“Não me parece coerente com o sistema jurídico vigente, tal como compreendido na pacífica jurisprudência do STJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), extirpar do contrato a taxa efetiva expressamente contratada em nome da vedação legal à capitalização de juros”, afirmou Isabel Gallotti.

A ministra ressaltou que o contrato deve ser respeitado, inclusive a taxa efetiva de juros nele pactuada. Contudo, destacou que cabe ao Judiciário analisar a cobrança de taxas abusivas, que consistem no excesso de taxa de juros, em relação ao praticado no mercado financeiro.

Acompanharam esse entendimento os ministros Raul Araújo, Antonio Carlos Ferreira, Villas Bôas Cueva e Marco Buzzi.

Posição vencida

Diante da divergência, o relator reexaminou o caso e confirmou seu voto. Na ratificação, o ministro Luis Felipe Salomão afirmou que “a mera existência de discriminação da taxa mensal e da taxa anual de juros, sendo esta superior ao duodécuplo daquela, não configura estipulação expressa de capitalização mensal, pois ausente a clareza e transparência indispensáveis à compreensão do consumidor hipossuficiente, parte vulnerável na relação jurídica”.

Salomão lembrou que, em recente julgamento realizado pela Terceira Turma (REsp 1.302.738), houve entendimento de que a especificação, no contrato bancário, das taxas mensal e anual de juros, não configurava informação capaz de, por si só, representar pactuação expressa de capitalização mensal de juros.

Financiamento de veículo

O recurso julgado é do Banco Sudameris, contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul favorável a cliente que financiou um carro em 36 prestações fixas. Como pagou apenas as duas primeiras parcelas, o banco ajuizou ação de busca e apreensão do veículo. Em seguida, o consumidor ingressou com ação pedindo a nulidade de cláusulas que considerava abusivas.

O contrato estabeleceu taxa de juros mensal nominal de 3,16% e taxa anual efetiva de 45,25%, com 36 prestações fixas de R$ 331,83. Na ação, o consumidor queria reduzir os juros para 12% ao ano, de forma que as prestações mensais ficassem em R$ 199,72. Ele baseou sua pretensão no Decreto 22.626/33 (Lei de Usura).

Segundo a ministra, o decreto restringiu a capitalização para evitar que uma dívida aumente em proporções não previstas pelo devedor que tenha dificuldade em cumprir o contrato. Além disso, já está estabelecido que o limite máximo de taxa de juros de 12% ao ano, previsto no citado decreto, não se aplica às instituições financeiras (Súmula 382 do STJ e 596 do STF).

“Na realidade, a intenção do recorrido é reduzir drasticamente a taxa efetiva de juros contratada, usando como um de seus argumentos a confusão entre conceito legal de capitalização de juros devidos e vencidos e o regime composto de formação de taxa de juros”, concluiu Isabel Gallotti.

No caso concreto, a ministra considerou que a contratação feita não poderia ser mais clara e transparente, com a estipulação de prestações em valores fixos e iguais, e com a menção à taxa mensal e à correspondente taxa anual efetiva. “Nada acrescentaria à transparência do contrato, em benefício do consumidor leigo, que constasse uma cláusula esclarecendo que as taxas mensal e anual previstas no contrato foram obtidas mediante método matemático de juros compostos”, esclareceu.

Dessa forma, a Seção deu integral provimento ao recurso do banco, reconhecendo a validade do contrato bancário.

Fonte: STJ

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